Convém inicialmente chamar a atenção para o panorama cultural prevalente no Brasil no final dos anos 60. No campo das artes plásticas, Hélio Oiticica desenvolvia um trabalho renovador do ponto de vista estético. José Celso Martinez e o grupo Oficina também seguiam nessa linha de “rompimento" encenando peças com texto de Oswald de Andrade e questionavam o comportamento das elites brasileiras. No cinema, Glauber Rocha criticava a situação política. Eram manifestações distintas mas que carregavam no seu bojo a mesma vontade de renovação convergindo para o que se chamou de tropicália. Observa-se, portanto, a amplitude cultural do movimento que arrastou consigo um grupo representativo de intelectuais e artistas que se identificaram com uma proposta vanguardista.
No campo musical, o principal compositor dessa nova era da canção brasileira foi Caetano Veloso. Assumindo a força da antropogafia sobre o movimento, o intérprete-compositor aludiu ao conceito do termo na sua origem, rememorando o episódio inusitado do Bispo Sardinha. Tendo sido convidado de honra para um jantar de uma tribo canibal nos tempos que seguiram a descoberta do Brasil pelos portugueses, o Bispo da Igreja católica é surpreendido ao notar que ele seria o próprio cardápio a ser consumido.
A antropofagia ganhava dimensão nas encenações escritas por Oswald de Andrade, cuidadosamente examinadas e apreciadas por Caetano Veloso. Portanto, a tropicália surge com o sabor dos anos 60, a partir de um conceito dos modernistas dos anos 20, e, com a mesma intensidade daquela década, também representou um ponto de convergência das vanguardas artísticas. A tropicália tornava-se “embrião” na obra plástica de Oiticica exibidas no Rio de Janeiro, desenvolvia-se nas manifestações teatrais dirigidas por José Celso e finalmente nascia com os baianos lançando suas músicas em São Paulo.
O termo “tropicália” foi utilizado por Oiticica para uma de suas obras, criada em 1967. Naquele mesmo ano, Caetano também utilizou o termo para composição sua, ao que tudo indica, por mera coincidência, pois ainda não tinha mantido contato com essa obra de Oiticica. O termo passou a ser visto na mídia, sempre ligado a manifestações de vanguarda e acabou sendo aceito por muitos, inclusive por Caetano para se referir ao seu trabalho.
Tendo como pano de fundo o pós-modernismo, a tropicália de Caetano recorreu à banalização do cotidiano, criticando o cenário político, os valores morais e a ideologia através de uma poética que sugeria ruptura e por vezes chocava. Não obstante, observava-se gêneros familiares aos sons nacionais como as marchas, o iê-iê-iê, o samba e o baião. Em referência ao aproveitamento do material conhecido (algumas vezes de um passado recente, outras de um passado remoto), comumente chamado de “relicário”, o mesmo era normalmente utilizado de maneira crítica. Os instrumentos musicais mais ouvidos eram as guitarras e o teclado. O caráter timbrístico tinha como premissa o som eletrifidado. Era a pura arte da desestetização, em outras palavras, criticava-se a classe média consumidora através de um certo mau gosto. Surgiu um novo paradigma do produto cultural, que passou a ser um produto de consumo. Como ressaltara o Manifesto Música Nova, iniciava-se uma nova era de consumo musical e a tropicália trabalha em cima desse novo paradigma, concentrando-se principalmente na classe média.
Apontada por alguns estudiosos como atualização da arte voltada para as massas, “busca de uma nova forma de expressão artística e inserção no mercado”,“abertura político-cultural” ou “redimensionamento da dimensão política das classes médias”, a tropicália surgia no momento pós-tomada do poder pelos militares, transformando o nacional-popular em cultura de massa.
A idéia de ruptura foi traduzida em cima do comportamento, do momento político e ideológico e das novas experimentações sonoras. A participação do público se dava em vários níveis. O espaço privilegiado dos acontecimentos em torno do tropicalismo eram os festivais. O elo de ligação entre o intelectual e o povo obedecia as regras da cultura via mídia, principalmente pelo rádio, pelos canais televisivos e pelo mercado da indústria fonográfica. Foi a fase de consolidação da participação do jovem como consumidor do produto cultural no Brasil.
Ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil introduzia a nova canção, lançava discos, sempre chamando a atenção pelo inusitado de suas experiências. Os dois jovens esbanjavam talento e inteligência artística. Caetano chamava a atenção principalmente pela beleza de sua poesia enquanto Gil tinha como ponto forte a pulsação ritmica. O primeiro LP lançado por Caetano individualmente contou com a participação direta de Júlio Medaglia e Sandino Hohagen como arranjadores, músicos do Manifesto Música Nova. Certamente a idéia de recorrer a esses músicos formais se deu em torno de tantas idéias em comum das quais compartilha-vam, como o compromisso com uma nova estética e a sintonia com as idéias de vanguarda. Gilberto Gil recorreu aos arranjos de outro músico erudito vanguardista, Rogério Duprat, apresentando um trabalho arrojado com efeitos timbrísticos interessantes. Observa-se, portanto, que a base tropicalista tinha como protagonista jovens talentos da nova música popular brasileira cujo trabalho se achava interligado com o cenário erudito se considerado o caráter vanguardista comum as duas correntes.
A canção de Caetano que abriu a tropicália chama-se “Alegria, Alegria”. É uma marcha de melodia simples e sem sofisticações do ponto de vista harmônico. No entanto, as palavras se identificavam com a proposta vanguardista, sugerindo um cenário de liberdade, ousado e em processo de ruptura com símbolos convencionais. Ela descreve alguém caminhando por uma cidade, sem preocupações de carregar consigo seus documentos e sim comprometido com a própria liberdade. A canção de Gil,“Domingo no Parque”, que contou com um arranjo de Rogério Duprat, conseguiu exprimir até ruídos do parque, transmitindo a sensação de se estar rodando em uma rodagigante. Nesse mesmo parque se desfechou de maneira trágica a disputa de dois homens pelo amor de uma mulher. O ritmo nordestino utilizado por Gil, o baião é utilizado ao lado do ritmo internacional pop.
Essas duas canções inauguraram o cenário da tropicália, seguidas de outras canções que foram apresentadas em LP e nos festivais. Prosseguiram na busca de novidades estéticas, permitiram novamente a contribuição das vanguardas radicais imprimindo um verdadeiro caráter de pesquisa ao trabalho que se desenvolveu durante 1967 e 1968. Tão explosiva, tão representativa e fértil foi a tropicália mas, no entanto, não persistiu por muito tempo. Durante o tempo que durou, as manifestações foram muito intensas, fosse através dos jovens que consumiam os LPs ou no prestígio alcançado pelas aparições e prêmios alcançados pelos tropicalistas nos festivais da moda onde as interpretações ganhavam nova dimensão na voz de Gal Costa.
Durante esse período não se constituiu em tarefa fácil garantir a supremacia do interesse do público pelas novas experimentações. Nem sempre o júri ou o público no geral estava preparado para assimilar tanta novidade. Por outro lado, toda essa disputa pela atenção resultava em audiência e um crescimento da indústria cultural em torno da canção brasileira.
Musicalmente, Caetano e Gil são merecedores do maior carinho e atençãono Brasil e no exterior. No entanto, suas canções, apreciadas até os dias de hoje, tomaram rumos diferentes daqueles da tropicália. Numa tentativa de releitura da trajetória desses dois artistas e sobre o que sugerem algumas de suas entrevistas na imprensa escrita ao comentar sobre a tropicália, nenhum dos dois parece ter tido a intenção de promover um movimento ou muito menos um tropicalismo. Tratava-se simplesmente de uma manifestação espontânea, inerente de seus espíritos jovens, potencialmente privilegiados, se expressando musicalmente através de um processo catalizador das manifestações mais significativas que ocorriam naquele momento.
Tendo em vista o cenário difuso da música popular brasileira hoje, só temos a lamentar pela efemeridade do movimento, com pouco proveitamento se comparado à sua fertilidade. Finalmente, lembramos Júlio Medaglia ao afirmar que a abertura cultural proposta pelo movimento ainda não foi totalmente preenchida.
Jaci Toffano é pianista concertista, professora do Departamento de Música da Universidade de Brasília. Realizou o Mestrado em Piano pela Juilliard School (Nova York - Estados Unidos), Doutoramento pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e Pós-Doutoramento pela Sorbonne (Paris, França).
1 Respectivamente: Marcus Napolitano, Cleos Favaretto, Marcelo Ridenti
2 Freyre, Gilberto. Casa-Grande&Senzala, Editora Record, Rio de Janeiro, 1992. Pag 462 e 463. Caetano e Maria Bethania
Foto: Mario Thompson
Parte do texto extraído do artigo "Caetano Veloso e a Tropicália: a releitura da antropofagia". Do site governamental de domínio público ↓
(http://www.dominiopublico.gov.br/)
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